Foi a cena do meu priminho de um ano brincando com bolas de sopro que desencadeou em mim uma cascata de pensamentos.
Lembrei de quando eu era criança e ia para os aniversários esperando ansiosamente por um determinado momento da festa. Não era a hora dos “parabéns”, não era o bolo, nem a distribuição das lancheiras. Eu esperava mesmo era pelo fim da festa, porque eu sabia que era aí que eles distribuíam as bolas de sopro. E lá ia eu pra casa, morta de contente, carregando duas ou três bexigas debaixo do bracinho magrelo.
Quando penso nisso hoje me pergunto que diabos eu via de tão encantador naquelas bexigas. Vai ver era o colorido, o brilho, o poder de flutuar.
Eu cuidava delas para que durassem o máximo de tempo possível e achava um absurdo sempre que via outra criança estourando bexigas. Ficava pensando como eu gostaria de ter dinheiro o bastante para comprar um monte de bexigas. Até o dia em que eu descobri que bolas de sopro nem eram tão caras assim.
Hoje qualquer um que escutar essa história da minha paixão por bolas de sopro certamente vai rir da inocência daquela criaturinha que tratava as bexigas como seres vivos e achava que só mesmo no dia em que tivesse muito dinheiro conseguiria comprar muitas delas.
O fato é que “o sonho impossível das bolas de sopro” não foi o único sonho que eu desmistifiquei ao longo desses anos.
Meu outro sonho de infância e adolescência (falando assim parece até que essa fase já acabou, mas com fé em Deus vai durar muito) que parecia meio distante da realidade era cursar medicina.
Eu nem sabia direito o que aquilo significava, mas cresci com a idéia na cabeça. Talvez por achar que era a chance perfeita de ajudar as pessoas, conseguir um bom emprego e ter um bom padrão de vida. Talvez por achar que só assim eu conseguiria comprar quantas bexigas eu quisesse.
À medida que eu fui crescendo a medicina foi ficando, ao mesmo tempo, mais perto e mais longe de mim. Mais perto porque eu me dedicava cada vez mais aos estudos. Mais longe porque para muita gente era ilusão minha sair do interior direto para uma universidade pública.
Lembro-me que sempre que me perguntavam “vai fazer vestibular pra quê?” e eu respondia “medicina”, vinham-me com um olhar de “deixe a bichinha sonhar” ou mandavam uma frase do tipo “é, né... todo mundo tem o direito de sonhar”. Claro que eu também contei com o apoio de gente que acreditava em mim até mais do que devia.
Aí um dia você passa no vestibular. E, como a criança que descobre que uma bexiga não custa mais do que alguns centavos, eu descubro que cursar medicina é perfeitamente possível.
Então você entra na faculdade. E aí você descobre que existe algo realmente tão frágil e precioso quanto as bexigas da minha infância: a vida, a sua e a dos outros. E a partir daquele dia em que você pisa pela primeira vez na universidade, sua missão é preservá-la.
Não importa mais em que colocação você foi aprovado no vestibular, de onde você é ou quantas bexigas você podia comprar na infância. Agora, meu caro, você é tão forte e tão fraco quanto qualquer outro. Tão vulnerável à aflição diante das provas, adepto às noites mal dormidas (ou não dormidas) e ao café como qualquer outro.
O tempo passa e o conhecimento só lhe traz uma certeza: a do quanto você é ignorante diante da vida. E é justamente a consciência dessa ignorância que fará de você mais sábio e mais humano ao tratar de seus pacientes.
E aí, quando você pensa que sua vida acabou, você descobre maravilhado que ela está só começando. Que você tem um mundo de possibilidades a desvendar e de personalidades para conhecer, incluindo a sua. Você descobre, enfim, que sua vida está recomeçando multiplicada, porque haverá um pedaço seu em cada ser humano do qual um dia você irá tratar, bem como um pedaço deles ficará em você.
Você vai, sim, perder ainda muitas noites de sono. Você ainda vai se afligir a cada prova. E no meu caso, de quebra ainda vou pegar trauma do sininho que Luiz toca nas provas práticas de anatomia da UERN.
Vai perder um pouco da vida social, mas vai saber aproveitar como ninguém os preciosos momentos ao lado da família, do(a) namorado(a) ou dos amigos.
Vai perder um pouco dos cabelos. Mas tudo bem, para isso existem os implantes.
Vai perder um pouco (ou seria “muito”?) do juízo. Mas e daí? Ser normal é coisinha chata.
No fundo, não importa o que você vai perder, porque o que se perde vai embora, e o que fica mesmo é o que a gente ganha: os amigos, o aprendizado, a chance de salvar vidas. No fundo, importante mesmo são as bolas de sopro que nós preservamos na vida.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
Sobre bolas de sopro e medicina
Por Samila Marissa
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6 comentário(s):
Mais uma vez você provando o seu amor pela Medicina. Seus textos são de uma sensibilidade e brilhantismo incontestáveis, Samila! Linda crônica... Você nos inspira sempre a buscar o que há de melhor para nossas vidas.
meu deus !!!! perfeita a cronica !!!
Uma crônica que nos faz pensar sobre o real sentido da vida e que nos estimula, especificamente falando de nós - estudantes de medicina, a lutar com unhas e dentes por todos os nossos objetivos e não nos deixar abater pelo sininho de luiz pré-prova prática de anatomia.
Parabéns Samila!
Samilaaa, estou encantada... Maravilhosa a cronica!!!
=')
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