quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Um céu, muitos mares

Já me disseram uma vez que nem em três quilos de cocaína há tanto delírio quanto nos meus pensamentos. E se há muito delírio nos meus pensamentos conscientes, que dirá nos inconscientes. Há exatos 110 anos, quando lançou seu livro “A interpretação dos sonhos”, Freud já dizia que eles, os sonhos, são a manifestação do nosso inconsciente. Não sei exatamente o que Freud diria dos meus sonhos, mas hoje, eu me dispus a interpretar um deles.
Depois da prova prática de Semiologia (uma daquelas provas capazes de me fazer perder o controle sobre minhas pernas, minha mente, e principalmente, sobre meus esfíncteres), fui ao encontro de minha aconchegante cama para assistir à apresentação de mais um dos meus sonhos pirados. Esse sonho, no entanto, veio com alguma coisa diferente. Algo de filosófico.
Como de costume, a cena era uma daquelas que unia vários elementos da minha vida cotidiana, mas que dificilmente aconteceria de verdade. Estávamos eu, alguns de meus colegas com quem eu acabara de fazer a prova e dois professores, todos vestidos de branco, sentados à mesa da cozinha da minha avó comendo batata frita. Quando, então, um dos professores faz uma espécie de pergunta-desafio: de que cor é o mar?
Um dos meus colegas responde: é azul, não? E o professor: Errado. Agora você, Samila. E eu dizia: “o mar é da cor daquilo que nele reflete”. Exatamente.
Quando eu acordei fiquei pensando que diabos eu queria dizer com “o mar é da cor daquilo que nele reflete”. E depois de um tempo acho que eu finalmente entendi. Lembrei-me de uma professora da 6ª série me explicando que a cor do mar era o reflexo da cor do céu. Logo, “o mar é da cor do céu que nele reflete”.
No sonho, creio que o céu seja a representação da vida, do que esperamos dela e do futuro. Há dias em que o céu está escuro, assim como há dias em que viver é difícil. Há dias em que o céu está límpido, como a vida quando está clara, simples. Azul, preto, branco, alaranjado. O céu muda sua cor de acordo com as circunstâncias, com o tempo, de acordo com a direção das ondas de luz. A cor da vida também muda com as circunstâncias, com o tempo, com a direção de nossas decisões.
Todavia, nós não somos capazes de olhar diretamente para o céu. Ou seja, não somos capazes de ver a vida como ela realmente é, mas como nós queremos vê-la. Cada um tem seu próprio espelho através do qual visualiza a vida. Assim, em vez de mirarmos diretamente o céu, olhamos para o mar, o espelho da vida, cujo reflexo é influenciado por nossas opiniões.
Portanto, a cor da vida (céu), vista em nosso espelho (mar), embora seja influenciada por inúmeros fatores – problemas, alegrias, derrotas e vitórias –, possui um fator preponderante: o modo como nós vemos a vida. Logo, muito mais importante do que os acontecimentos em si, são o modo como eles refletem em nossas vidas, como o encaramos, como sentimos seus impactos.
Cada um tem seu próprio mar, seu modo ímpar de ver a vida, e por isso mesmo cada um de nós é tão diferente um do outro. E talvez esta tenha sido, para mim, uma das grandes lições da Semiologia (estudo dos sinais e sintomas das doenças, exame físico e entrevista do paciente).
Não importa se os pacientes têm todos as mesmas queixas e doenças. Eles não são os mesmos. Logo, o tratamento, aconselhamento e acompanhamento também não podem ser os mesmos para todos eles. Não importa se o céu é um só. Os mares são vários. Cada paciente é um mar no qual teremos de navegar cuidadosamente para descobrir sua profundidade, seus ventos e suas tormentas.

UM APELO AO SEU CORAÇÃO

Aos alunos da Faculdade de Medicina da UERN:

UM APELO AO SEU CORAÇÃO

Esta semana, eu e alguns de meus colegas, preocupados com a deficiência na infra-estrutura dos ambulatórios da FACS, pedimos a alunos de todas as turmas para comparecerem à reunião com os professores para discutir os problemas dos ambulatórios (quinta-feira, dia 22 de setembro).
Teto caindo, falta de ar condicionado, deficiências nos banheiros, ausência de salas apropriadas para atendimento da ginecologia, falta de uma mãozinha de tinta, divisão do espaço com bodes, enfim... são vários os problemas, os quais nossos professores, diretor e demais funcionários já tentaram inúmeras vezes solucionar, porém, sem a devida resposta da Pró-Reitoria.
Enquanto convidávamos os alunos para a reunião, ouvimos as mais diversas respostas, desde respostas entusiasmadas a colaborar até respostas desanimadoras. Alguns de nossos colegas simplesmente me responderam: “tô nem aí”; “vou fazer internato de clínica em outra cidade”; ou “isso não é problema meu”.
E sabem, meus caros, eu comecei a pensar... vocês têm razão: isso não é problema de vocês. Ora, vocês, dentro de poucos anos, serão médicos cujo salário possibilitará pagar assistência privada à saúde.
Vou lhes contar de quem é este problema: este problema é de milhares de pessoas que serão atendidas por você ao longo de sua carreira médica; este problema é do velhinho em coma na UTI do HRTM; é da gestante que não sabe se terá médico para fazer seu parto; é da criança desnutrida; enfim, de 180 milhões de brasileiros dependentes do SUS. De uma terra onde serviço médico vale ouro. Acha que eu estou apelando? Tem razão. Estou apelando. Apelando pro seu coração de estudante.
Nossos soldados da frente de batalha, os alunos da primeira e segunda turma, que tanto lutaram por esta faculdade e tantos problemas enfrentaram, já se formaram. A luta agora é nossa. E se você acha “luta” um termo inadequado, eu posso mudar, posso dizer guerra. Sim, porque quem lida com condições precárias de trabalho, sofrimento alheio e ainda corre o risco de sujar a roupa de trabalho com sangue, é quase um soldado de guerra.
E quando eu digo que “a luta é nossa”, é porque é nossa mesmo. Não é só do presidente do Centro Acadêmico ou do representante de sua turma, mas sim de todos os que aqui estudam. Por isso, antes de criticar o esforço alheio, avalie seus próprios atos.
O meu “obrigada” a todos os alunos que costumam aparecer nas reuniões para discutir melhorias na faculdade. E o meu “muito obrigada” aos nossos professores que dedicam seu tempo procurando fazer de nós profissionais de excelência.
Notícia: na reunião desta quinta, foi decidido que os ambulatórios serão temporariamente fechados, devido às más condições de infra-estrutura, e serão submetidos à avaliação da ANVISA. Enquanto isso, vai se tentar conseguir outro local para as aulas práticas.
A faculdade certamente já enfrentou problemas muito maiores do que este. No entanto, incomoda-me o fato de observar, nas falas de alguns de meus professores e colegas, uma certa desesperança quanto aos rumos das aulas práticas. E, como diria nosso Professor de psiquiatria José Hélio: “desesperança é um critério para tentativa de suicídio”. Por favor, não vamos deixar o trabalho de tanta gente morrer.
Guerra, morte, suicídio... eu usei palavras pesadas, não foi?
Sim, meus nobres colegas, a missão é pesada, e por isso precisamos de muita gente para carregá-la. Não apenas a missão de melhorar os ambulatórios. Mas a missão de fazer da nossa faculdade um criadouro de bons médicos.
Aos alunos que não comparecem às reuniões, o meu apelo: participem. Eu sei, eu sei que não é problema de vocês. Mas um dia pode vir a ser.

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