Já me disseram uma vez que nem em três quilos de cocaína há tanto delírio quanto nos meus pensamentos. E se há muito delírio nos meus pensamentos conscientes, que dirá nos inconscientes. Há exatos 110 anos, quando lançou seu livro “A interpretação dos sonhos”, Freud já dizia que eles, os sonhos, são a manifestação do nosso inconsciente. Não sei exatamente o que Freud diria dos meus sonhos, mas hoje, eu me dispus a interpretar um deles.
Depois da prova prática de Semiologia (uma daquelas provas capazes de me fazer perder o controle sobre minhas pernas, minha mente, e principalmente, sobre meus esfíncteres), fui ao encontro de minha aconchegante cama para assistir à apresentação de mais um dos meus sonhos pirados. Esse sonho, no entanto, veio com alguma coisa diferente. Algo de filosófico.
Como de costume, a cena era uma daquelas que unia vários elementos da minha vida cotidiana, mas que dificilmente aconteceria de verdade. Estávamos eu, alguns de meus colegas com quem eu acabara de fazer a prova e dois professores, todos vestidos de branco, sentados à mesa da cozinha da minha avó comendo batata frita. Quando, então, um dos professores faz uma espécie de pergunta-desafio: de que cor é o mar?
Um dos meus colegas responde: é azul, não? E o professor: Errado. Agora você, Samila. E eu dizia: “o mar é da cor daquilo que nele reflete”. Exatamente.
Quando eu acordei fiquei pensando que diabos eu queria dizer com “o mar é da cor daquilo que nele reflete”. E depois de um tempo acho que eu finalmente entendi. Lembrei-me de uma professora da 6ª série me explicando que a cor do mar era o reflexo da cor do céu. Logo, “o mar é da cor do céu que nele reflete”.
No sonho, creio que o céu seja a representação da vida, do que esperamos dela e do futuro. Há dias em que o céu está escuro, assim como há dias em que viver é difícil. Há dias em que o céu está límpido, como a vida quando está clara, simples. Azul, preto, branco, alaranjado. O céu muda sua cor de acordo com as circunstâncias, com o tempo, de acordo com a direção das ondas de luz. A cor da vida também muda com as circunstâncias, com o tempo, com a direção de nossas decisões.
Todavia, nós não somos capazes de olhar diretamente para o céu. Ou seja, não somos capazes de ver a vida como ela realmente é, mas como nós queremos vê-la. Cada um tem seu próprio espelho através do qual visualiza a vida. Assim, em vez de mirarmos diretamente o céu, olhamos para o mar, o espelho da vida, cujo reflexo é influenciado por nossas opiniões.
Portanto, a cor da vida (céu), vista em nosso espelho (mar), embora seja influenciada por inúmeros fatores – problemas, alegrias, derrotas e vitórias –, possui um fator preponderante: o modo como nós vemos a vida. Logo, muito mais importante do que os acontecimentos em si, são o modo como eles refletem em nossas vidas, como o encaramos, como sentimos seus impactos.
Cada um tem seu próprio mar, seu modo ímpar de ver a vida, e por isso mesmo cada um de nós é tão diferente um do outro. E talvez esta tenha sido, para mim, uma das grandes lições da Semiologia (estudo dos sinais e sintomas das doenças, exame físico e entrevista do paciente).
Não importa se os pacientes têm todos as mesmas queixas e doenças. Eles não são os mesmos. Logo, o tratamento, aconselhamento e acompanhamento também não podem ser os mesmos para todos eles. Não importa se o céu é um só. Os mares são vários. Cada paciente é um mar no qual teremos de navegar cuidadosamente para descobrir sua profundidade, seus ventos e suas tormentas.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Um céu, muitos mares
Por Samila Marissa
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